sexta-feira, 29 de agosto de 2008

"Confesso que estou vivo"

......"Assim como todo brasileiro, eu vejo televisão. Depois de um dia de trabalho intenso, cheguei em casa e liguei a TV para ver os noticiários, quando fui pego de surpresa. Aparecia na tela um jovem que dizia ter sido tuberculoso, mas que estava curado. Respirei aliviado. Uma jovem dizia que tinha câncer e que se curou. Fiquei mais animado ainda com o progresso da medicina. Logo entra um jovem, olha para mim e diz: "Eu tenho AIDS e não tenho cura!".
Depois li nos jornais que a segunda etapa dessa campanha veiculada pela TV começaria. No carnaval ia aparecer a máscara negra - o negro da morte e do racismo - para continuar o didático processo de assustar a população, uma espécie de terrorismo pedagógico com seqüestro da esperança.
......Fiquei parado por um tempo, pensando, com amarga sensação de que alguém me estava puxando para baixo, para a idéia da morte, para o fundo do poço. Custava a crer que fosse uma propaganda promovida pelo Ministério da Saúde, mas era.
......Lembrei-me de que a AIDS havia aparecido em 1981, ligada à idéia da morte, doença fatal, vírus invencível, morte com data marcada. Estar com AIDS era estar marcado para morrer muito mais rápido do que qualquer mortal. Os primeiros doentes de AIDS percorreram em pouco tempo esse caminho do sofrimento terrível, da discriminação e da morte. Acompanhei e presenciei a morte de meus dois irmãos hemofílicos, Henfil e Francisco Mario. Na morte de Henfil, Francisco, sabendo que iria morrer, não resistiu à tentação de prever a minha morte. Generosamente me deu três anos!
......Com o tempo muita coisa foi mudando. O vírus foi perdendo sua invencibilidade e seu caráter de absoluta excepcionalidade. Veio o AZT, que não cura, mas controla em muitos casos o desenvolvimento da doença. Vieram várias outras drogas que estão sendo testadas e administradas, como o DDI e vários outros. Vieram os tratamentos preventivos nos soropositivos e nos doentes, como o uso de pentamidine para combater a pneumonia mais comum entre os doentes de AIDS ( Pneumocistis carini ). Os prazos de manifestação da doença foram se alargando para 7, 10, 15 anos. Os prazos de sobrevivência dos doentes romperam a barreira do ano e meio. A vacina deixou de ser uma pura hipótese e está sendo testada. Enfim, a AIDS foi e está sendo enfrentada como uma doença que ainda não tem cura, mas que já pode ser em grande medida controlada e que, num prazo ainda não determinado, poderá ser curada ou definitivamente controlada, como já ocorreu com tantas outras doenças incuráveis da história. Lembro-me de que sou um incurável hemofílico, fui um incurável tuberculoso aos 15 anos e um incurável maoísta nos anos 70. Hoje me sinto curado de todas essas doenças.
......Depois de me preparar para morrer em dois anos - fiz também meus cálculos - e de verificar que já se passaram quase três anos de minha morte anunciada, cheguei à conclusão de que o melhor que faço é me preparar mesmo para continuar vivendo. Tenho ainda e gozo de boa saúde e grande disposição para o trabalho, principalmente político, como: lutar pela democratização do país, contra os pacotes econômicos, participar de campanhas de saúde, particularmente AIDS, recuperação do Rio de Janeiro, defesa dos direitos humanos, proteção ao meio ambiente, reforma agrária, entre outras questões.
......Nesse período de preparação para a morte, cheguei mesmo a propor a meu xará Herbert Daniel a compra comum de uma sepultura no Cemitério São João Batista, dado o alto preço desse bem essencial e a economia que faríamos, colocando na mesma tumba um nome e dois sobrenomes. Herbert Daniel chegou a facilitar a minha proposta, dizendo que ele queria ser cremado, o que obviamente me daria muito mais espaço pelo mesmo preço.
......Hoje me vejo em situação embaraçosa para mim e para meus amigos. Minha morte não ocorreu. Tive de assistir desolado à morte de vários amigos que se foram antes de mim. Minha saúde continua boa, apesar de todas as campanhas do Ministério da Saúde e de todos os remédios que tomo, incluindo a cerveja, que até hoje não apresentou nenhum efeito colateral com o AZT. Trabalho intensamente como se estivesse realmente vivo. Vou ao cinema e a shows musicais sem provocar nenhum espanto entre aqueles que me vêem vivo. Escrevo para jornais. Dou entrevistas para rádios e televisões nacionais e estrangeiras, demonstrando sinais inequívocos de inteligência, agilidade e bom humor (salvo quando falo da equipe econômica do governo).
......Meu analista, desesperado com a minha insistência em não morrer, já propôs o fim do tratamento. Meu médico imunologista já recebe com visível inquietação os resultados normais de meus hemogramas. Minha companheira muitas vezes se esquece de minha situação e me trata com a absoluta e notável naturalidade.
......Foi aí que a propaganda do Ministério da Saúde veio me recolocar no meu devido lugar e apontar um caminho. Gravei em vídeo a mensagem e agora passei a ver a propaganda toda vez que desperto e antes de dormir. "Tenho AIDS e não tem cura!". Decidi então acrescentar, ou aperfeiçoar o vídeo do governo (pago por muitas empresas que querem fazer o bem para as pessoas com AIDS), uma mensagem minha para mim mesmo, que diz: "Convença-se disso, seu imbecil. O Ministério da Saúde sabe o que é bom para você. O governo só quer o seu bem! Cancele todos os seus compromissos de hoje, principalmente os políticos. Vista-se de preto para ficar mais apropriado à sua situação. Acabe com esse sorriso sem sentido que brota de sua boca. Mande sua companheira e filhos para lugares bem distantes para que não vejam o seu fim tão próximo. Feche a porta. Venha de lá um abraço. Dr. Alceni. Abra o gás!". "


Esse, é um dos textos de Betinho, ou Hebert de Souza: uma pessoa que não se deixou abater por ser soropositivo. Vala a pena ler, não só esse, mas todos ou outros. Pra quem quiser saber mais clique aqui.
É isso... Beijos!

Um comentário:

Unknown disse...

Muita boa a postagem. Serve de alerta e, ao mesmo tempo, transmite força e ânimo para aqueles que tentam sobreviver com essas terríveis doenças.
Parabéns, alunos do 2º ano IST. O Blog está cada dia mais instrutivo.
Maria Creuza Viana